quinta-feira, março 28

'Escada' para as estrelas

 


Modos de ser brasileiro(a)

Acertar passarinho com laranja chupada.

Decorar escalações de times de 20 anos atrás.

Ler poemas para a namorada.

Molhar pão na sopa.

Beber chope morno em copo de plástico sem reclamar.

Tirar espinho do pé com alfinete.

Passar duas horas numa livraria, sair com as mãos vazias e mil histórias na imaginação.

Pagar a conta mais antiga no dia em que chega a mais nova.

Subir o morro de madrugada para ver o sol nascer.

Contar os segundos entre o relâmpago e o trovão para saber a distância.

Molhar os pés no riacho.

Aprender a dormir no ônibus e acordar uma parada antes.

Ficar doidão sem perder o juízo.

Escrever certas coisas e nunca mostrar a ninguém.

Impedir que experiência e entusiasmo se tornem antônimos.

Colecionar nuvens engraçadas.

Emborcar besouros e ir embora.

Na hora do TSE, tirar o som e olhar os candidatos nos olhos.

Dizer com licença, desculpe, por favor, muito obrigado.

Saber tomar um porre sem aborrecer ninguém.

Designar tarefas, explicar antes, cobrar depois.

Deixar que os velhos e as crianças conversem em paz.

Ir a pé para economizar os trocados do ônibus.

Sentar bem na frente para ver o filme antes dos outros.

Ensinar os filhos a rezar e a tomar a bênção.

Não ter medo de pensar em nada.

Ver alguém dormindo com frio, cobri-lo e ir embora.

Descascar laranja sem partir a espiral.

Fazer em um só dia uma amizade que acaba durando a vida toda.

Procurar tesouros enterrados.

Praticar tiro-ao-alvo com bodoque e lagartixa.

Botar bombril na antena da TV.

Procurar dançar sempre no miolo do salão.

Todo aniversário ficar junto da parede e marcar a altura.

Procurar discos voadores até ser capaz de jurar que viu um.

Jogar bola com o cachorro.

Empilhar moedas por ordem de tamanho.

Jogar damas com tampas de garrafa.

Fazer promessas a torto e a direito, e pagá-las todas.

Assar castanhas na brasa.

Ter um número da sorte.

Inventar apelidos para os conhecidos.

Durante as férias ler os livros da próxima série para ir se preparando.

Desembarcar sozinho na rodoviária de uma cidade sem conhecer ninguém.

Saber andar a cavalo e de bicicleta.

Fazer a barba antes da idade para que venha logo.

Ter um santo de devoção e não contar pra ninguém.

Adormecer pensando nas despesas mas acordar novinho em folha.

Nadar, nadar e correr na praia.

Virar a noite para entregar um trabalho no prazo.

Acertar um contrato “de boca” e cumpri-lo em cada detalhe.

Fazer um curso noturno pensando em daqui a dez anos.

Assar na chapa o pão francês de ontem.

De meia em meia hora dar uma volta na casa apagando luzes desnecessárias.

Pagar bem um trabalho bem feito, e fazer bem um trabalho bem pago.

Consertar e manter na ativa um eletrodoméstico até ele morrer de morte natural.

Saber quando é hora de desistir por enquanto.

Passar uma noite em claro com uma criança com febre.

Aprender a dobrar lençol sozinho e a cortar as unhas da mão direita.

Tratar outra pessoa como se fosse você, tratar um bicho como se fosse uma pessoa, tratar uma planta como se fosse um bicho, tratar uma coisa como se fosse uma planta.

Praticar estas ações, e todas as demais, nos círculos concêntricos do coração do Brasil: sua cidade, seu bairro, sua rua, sua casa.

O vício de ler

O vício de ler tudo o que me caísse nas mãos ocupava o meu tempo livre e quase todo o das aulas. Podia recitar poemas completos do repertório popular que nessa altura eram de uso corrente na Colômbia, e os mais belos do Século de Ouro e do romantismo espanhóis, muitos deles aprendidos nos próprios textos do colégio. Estes conhecimentos extemporâneos na minha idade exasperavam os professores, pois cada vez que me faziam na aula qualquer pergunta difícil, respondia-lhes com uma citação literária ou com alguma ideia livresca que eles não estavam em condições de avaliar. O padre Mejia disse: «É um garoto afectado», para não dizer insuportável. Nunca tive que forçar a memória, pois os poemas e alguns trechos de boa prosa clássica ficavam-me gravados em três ou quatro releituras. Ganhei do padre prefeito a primeira caneta de tinta permanente que tive porque lhe recitei sem erros as cinquenta e sete décimas de «A vertigem», de Gaspar Núnez de Arce.

Lia nas aulas, com o livro aberto em cima dos joelhos e com tal descaramento que a minha impunidade só parecia possível devido à cumplicidade dos professores. A única coisa que não consegui com as minhas astúcias bem rimadas foi que me perdoassem a missa diária às sete da manhã. Além de escrever as minhas tolices, era solista no coro, desenhava caricaturas cómicas, recitava poemas nas sessões solenes e tantas coisas mais fora de horas e de lugar que ninguém entendia a que horas estudava. A razão era a mais simples: não estudava.

No meio de tanto dinamismo supérfluo, ainda não entendo por que razão os professores se interessavam tanto por mim sem barafustar com a minha má ortografia. Ao contrário da minha mãe, que escondia do meu pai algumas das minhas cartas para o manter vivo e outras mas devolvia corrigidas e às vezes com os parabéns por certos progressos gramaticais e o bom uso das palavras. Mas ao fim de dois anos não houve melhorias à vista. Hoje o meu problema continua a ser o mesmo: nunca consegui entender por que se admitem letras mudas ou duas letras diferentes com o mesmo som e tantas outras normas sem razão.
Gabriel García Marquez, "'Viver para Contá-la"

A Senhora o cãozinho

Espalhou‑se logo a notícia de que uma cara nova se passeava pela marginal: uma senhora com um cãozinho. Dmítri Dmítritch Gúrov, com duas semanas de Ialta, já se adaptara o bastante para também se interessar por quem chegava de novo. Sentado à mesa no café Vernet, viu a senhora a passar na marginal: uma loura jovem e nada alta, de boina; atrás dela corria um spitz branco.

Depois voltou a cruzar‑se com ela, várias vezes nesse dia, no jardim municipal e no parque. Sempre sozinha, a mesma boina, o spitz branco atrás; ninguém sabia quem era, diziam simplesmente: a senhora do cãozinho.

"Sozinha aqui, sem marido nem amigos — congeminava Gúrov —, valia a pena conhecê‑la."

Gúrov não chegara aos quarenta anos, mas já tinha uma filha de doze e dois rapazes no liceu. Haviam‑no casado cedo, ainda no seu segundo ano da universidade, de maneira que a esposa, agora, parecia ter o dobro da idade dele.

Era uma mulher alta, de sobrancelhas escuras, muito direita, solene, ar importante e, como dizia ela de si, uma pensadora. Lia muito, nas cartas já não escrevia o «iáti»*, chamava ao marido Dimítri em vez de Dmítri, marido que, por sua vez, a achava de inteligência estreita, ideias curtas, deselegante como mulher, lhe tinha medo e não gostava de parar muito em casa. Enganava‑a havia muito tempo, e com frequência, talvez por isso pensasse quase sempre mal das mulheres, e, quando na sua presença se falava delas, caracterizava‑as por:

— Raça inferior!

Achava­‑se com suficiente e amarga experiência para lhes chamar o que quisesse, mas nem dois dias podia passar sem a «raça inferior». Não se sentia bem na companhia dos homens, aborrecia‑se, era frio, pouco loquaz; mas na companhia das mulheres ficava logo à vontade, com elas sabia como se portar, como falar, até como se calar. Na sua aparência, no seu feitio, em toda a sua natureza havia alguma coisa que atraía, que ganhava a simpatia das mulheres, que as seduzia; Gúrov sabia‑o, e também uma força qualquer o puxava para elas.

A sua experiência vasta, e realmente amarga, ensinara‑lhe havia muito que qualquer intimidade, de início uma coisa agradável para variar na vida, uma aventura fascinante mas ligeira, entre as pessoas decentes, se transformava inevitavelmente em problema dos mais complicados, sobretudo entre os moscovitas indolentes e irresolutos, e se volvia, ao fim e ao cabo, em situação penosa. A cada novo encontro com uma mulher interessante, porém, toda a experiência como que se lhe varria da memória, e tinha outra vez vontade de viver, e era tudo tão fácil, tão divertido.

Estava então uma vez, pelo entardecer, a almoçar no jardim e viu que a senhora da boina se aproximava sem pressas, com a intenção de ocupar a mesa perto da sua. A expressão, o andar, a roupa, o penteado, tudo lhe dizia que a mulher era da boa sociedade, casada, em Ialta pela primeira vez, e que se aborrecia… Nas histórias sobre a pouca­‑vergonha dos hábitos locais havia muita mentira, e Gúrov desprezava­‑as, sabia que tais histórias eram inventadas por pessoas que se soubessem pecar também pecavam, mas quando a senhora se sentou à mesa ao lado, a uns três passos dele, vieram­‑lhe à memória essas histórias de conquistas fáceis, de escapadelas para os montes, e a ideia sedutora de uma relação leve e passageira, a ideia de romance com a desconhecida de quem não sabia sequer o nome, dominou‑o repentinamente.

Chamou o spitz com um gesto afável e, quando o cãozinho se aproximou, pôs­‑se a ameaçá­‑lo com o dedo. O spitz rosnou. Gúrov voltou a brandir o dedo para o cão.

A senhora olhou para ele e baixou logo os olhos.

— Não morde — disse ela, e corou.

— Posso dar‑lhe um osso? — E, quando ela fez que sim com a cabeça, perguntou, simpático:

— Há muito que chegou a Ialta?

— Há cinco dias.

— Pois eu já me arrasto por cá vai para duas semanas.

Curto silêncio.

— O tempo corre depressa, e mesmo assim isto por aqui é tão aborrecido! — disse a senhora sem olhar para ele.

— Já é um chavão as pessoas dizerem que isto é aborrecido! Vivem num Beliov ou numa Jizdra quaisquer e não se aborrecem, mas mal chegam: «Ah, que seca! Ah, que poeirada!» Como se acabassem de chegar de Granada.

Ela riu‑se. Depois, cada qual começou a comer em silêncio, como dois desconhecidos; mas após o almoço saíram juntos, conversando num tom leve e brincado, de pessoas livres, bem‑dispostas, a quem era indiferente para onde fossem, do que falassem. Passeavam e comentavam que o mar tinha uma luminosidade estranha; que a água estava cor de lilás, tão suave e tão quente; e que a lua traçava uma faixa dourada sobre o mar. E também que, depois de um dia de tanto calor, o ar estava abafado. Gúrov contou­‑lhe que era moscovita, fizera o curso de Letras, mas trabalhava num banco; que em tempos se preparara para cantar na ópera privada, mas desistira, que tinha duas casas próprias em Moscovo… E dela ficou a saber que crescera em Petersburgo, mas casara na cidade de S., onde se instalara havia dois anos, que ia ficar em Ialta mais um mês e que o marido talvez se lhe viesse juntar, porque também precisava de descansar. Não conseguiu foi explicar cabalmente em que serviço estava o marido — se na administração provincial, se na rural —, o que de resto lhe pareceu, a ela própria, engraçadíssimo. Gúrov ficou também a saber que se chamava Anna Serguéevna.

Depois, chegado ao quarto, pôs­‑se a pensar nela, a pensar que no dia seguinte a voltaria, decerto, a encontrar. Tinha de ser. Quando já recolhia à cama, ocorreu‑lhe que não haveria assim tanto tempo que ela, como a filha dele, se sentava nos bancos do liceu, e lembrou‑se da timidez, do acanhamento com que ria e falava a um homem desconhecido: pelos vistos, fora a primeira vez na vida que, sozinha, se achara naquela situação de andarem atrás dela, de olharem para ela, de falarem com ela com uma única e secreta intenção que ela não podia deixar de adivinhar. Lembrou­‑se do seu pescoço fino e frágil, dos seus olhos bonitos, cinzentos.
Anton Tchékhov , "A Senhora do cãozinho"

quarta-feira, março 27

Moderna caverna

Andar por esse edifício é antes adentrar por uma caverna moderna, construída para atender necessidades acadêmico-científicas, interrogando-se se, pela força da natureza, por um ato divino ou por mãos humanas, e quem sabe com uma pincelada forte de contemporâneo-futurística arquitetura. Percorro seus corredores azuis-claros, como se o lugar conceitual ou originário dessa gruta fosse antes nas alturas universais que nas profundezas da terra, como se o ar, as nuvens, também fossem escaváveis, motivo de claustrofobia, recusa de claridade. Nele pisamos, interiorizando-o, admirando novidades côncavas e convexas em topografias arquiteturais algo inéditas, ainda desconhecidas, seja no papel, seja na carne.


As paredes parecem subir regulares, retas; mas antes do meio do caminho, elas entortam para dentro, formando uma sensação de lapidar, de peça escultórica em uma abertura, uma incisão na pedra para propósitos de habitação humana. E o teto adquire uma feição industrial, de nave espacial, com os encanamentos e a iluminação à mostra; ou, fechados pela treliça respirante de um gradeamento cinzento, os fios elétricos amarelos são spaguetti presos por um escorredor de massa pendente. Vejo como as esquinas se abrem como plataformas para o jardim, entortadamente regulares – polígonos irregulares, de uma versão de interiores de Alice no país das maravilhas, de um Gabinete do Dr. Caligari, dentro de um prédio louco…

Chegou a hora de subir as tortuosas escadas dessa caverna moderna, rumando ao céu. Os degraus são de concreto pesado, e as paredes brancas nos envolvem junto a fendas de formas indecisas abertas ao nada, planos soltos que pudessem ter sido formatados, ou destruídos, por guerras atômicas ou estelares. Talvez aquilo tenha sido construído como a ideia, ou mesmo a partir, por cima, de um destroço de arquitetura humana funcional – como em De volta ao Planeta dos Macacos. É isto em que cerrados estamos uma estrela em formação ou explosão, um destroço de vida reconstruído?

terça-feira, março 26

Poste de leitura

 


Gide no armário

Minha empregada entra no escritório para espanar as estantes. É uma mulher silenciosa e digna, que parece invisível. De repente, dou com ela a me observar pelas costas. “O senhor olha para o computador como se estivesse em uma janela”, me diz. “Parece que vê alguma coisa muito distante. O que é?”

Em uma pergunta, ela capturou a grande agonia dos que escrevem. Que ideias atormentam os escritores enquanto eles trabalham? Antes de sair do armário com a obra pronta, no longo período que precede a exposição do texto à luz do dia, que visões os atormentam?

Que aconteceria se, nos intervalos da batalha, os escritores anotassem em um caderno as experiência da luta? Em Os moedeiros falsos, um dos mais importantes romances de André Gide, o personagem-escritor, Édouard, registra em um caderno a crítica precoce do romance que está a escrever – chamado, justamente, Os moedeiros falsos.

Escreve Édouard: “Imaginem o interesse que teria para nós semelhante caderno mantido por Dickens, ou Balzac. (...) A história da obra, de sua gestação!”. Ele mesmo se arrisca a responder: “Seria arrebatador... mais interessante que a própria obra”.

Pois, enquanto escrevia Os moedeiros falsos, o próprio André Gide seguiu o procedimento sugerido por seu personagem. O resultado, Diário dos Moedeiros falsos (Estação Liberdade, tradução de Mário Laranjeira), confirma a impressão de Édouard. Ou será o contrário?

O lançamento da edição brasileira do Diário faz parte de um pacote quádruplo, que inclui, além de Os moedeiros falsos, outros dois importantes livros de Gide: os romances Os porões do Vaticano, de 1948, e o inédito O pombo-torcaz, então inédito.

Na parte final de seu diário, Gide relata um sonho que teve com Marcel Proust. Está na biblioteca de Proust, que o convidou para um chá. Proust só lhe aparece de costas, escondido pelas grandes orelhas da bergère. Surpreso, Gide nota que um barbante lhe prende as mãos. O longo fio atravessa a sala e se liga a dois livros nas prateleiras da biblioteca.

Não se controla: puxa o barbante com delicadeza mas determinação, até que dois livros despencam no chão. O barulho da queda interrompe uma história que Proust lhe contava. Não chegamos a saber de que história se trata, sabemos apenas que foi interrompida.

Proust se retira. Um mordomo entra na sala para recolocar os livros no lugar. Gide confessa: “Sabia que puxando o cordão eu os derrubaria, e o puxei assim mesmo. Foi mais forte do que eu”.

Não é por acaso que André Gide registra o sonho em seu Diário de trabalho. Na aparência, ele está deslocado, fora do lugar. Na verdade, carrega em seu coração aquilo de que, desde a primeira linha (o primeiro barbante de palavras), Gide tenta falar. Enquanto escreve, o escritor está sempre a manejar fios que não controla e a seguir instruções cuja origem lhe escapam.

Os fatos só interessam a um escritor se ele puder manipulá-los – como um fantoche com seus fios. Outra história ilustra bem isso. Em uma manhã do ano de 1921, Gide observa a vitrine de uma livraria de Paris. Vê um garoto que, atrapalhado, furta um livro. O menino aproveita um momento em que o vigia lhe dá as costas (do mesmo modo que Proust dá as costas a Gide) e enfia o livro no bolso. Ato contínuo, percebe que um estranho, à distância, o observa.

Com medo de ser denunciado, o garoto recoloca o livro em seu lugar. Comovido, Gide se aproxima e lhe pergunta que livro tentava roubar. “Um guia da Argélia. Mas custa caro demais.” O escritor lhe dá alguns francos para que o compre.

O garoto exibe seu livro, feliz. Para espanto de Gide, é uma edição de 1871. De cinquenta anos antes! “É velho à beça. Não lhe servirá”, o escritor comenta. O rapaz se surpreende: “Oh! Sim; tem os mapas. A mim o que mais me diverte é a geografia”. Não tentou roubar um guia de viagem. No interior do velho guia, guarda-se uma chave para o sonho, isto é, uma obra de ficção! Livros são máquinas de sonhar.

O episódio me remete a uma observação que André Gide anota durante uma temporada de descanso em Dudelange: “Às voltas com nuvens por horas a fio. Este esforço de projetar para fora uma criação interior, de objetivar o sujeito (antes de sujeitar o objeto) é extenuante”. A anotação resume, de modo cru, as ideias que movem o Diário. O mais difícil não é a escrita, mas o trabalho interior que a precede e do qual ela não passa de um resto. Uma sobra (fezes?), que mal e porcamente registra aquilo que se perseguiu.

O escritor, diz Gide, navega dias a fio sem nada à vista. Escrever é atravessar essa “vertigem do espaço vazio”. Espaço disforme e sem sentido em que ele se engolfa. Durante a travessia, um escritor (qualquer escritor, eu mesmo) se parece com o Gide que, na biblioteca de Proust, em vez de ouvir as palavras do mestre ou de se deliciar com suas lições, prefere – imitando uma criança travessa – derrubar dois livros no chão.

Foi o que minha empregada percebeu quando me viu olhando “através” da tela do computador. Eu não olhava as palavras. Não revia o texto ou assinalava correções. Não pensava no estilo ou na sintaxe – nenhuma dessas questões técnicas que, em geral, supomos que atormentam os escritores. Eu experimentava minha pequena vertigem.

Buscava fios (barbantes) que segurassem o sujeito disperso e inquieto que sou. Até que, finalmente, comecei a escrever. O resultado é esse pequeno texto que agora vocês leem. Não é grande coisa, mas é isso.

“Escritores são navegadores de cabotagem que acreditam estar perdidos”, diz Gide. São homens, diz ainda, que decidem “tomar deliberadamente o partido de sua estranheza”. Minha empregada soube ver isso em mim. Não julgou que eu estivesse blefando ou fazendo pose, tampouco que estivesse louco.

Carinhosamente, soube ver minha pequena solidão.

Por isso escritores estão quase sempre sozinhos. Não é fácil forçar as portas de seu armário interior. Estão sempre afastados, inclusive, da parca sabedoria que, a duras penas, acumularam. Distante, inclusive, de si mesmos. Anota Gide: “Nunca aproveitar o impulso já adquirido – tal é a regra do meu jogo”.
José Castello, "Sábados inquietos"

Cempoala

Crepúsculo das altas chamas na costa de Veracruz. Onde naus estão ardendo e ardem os soldados rebeldes pendurados das traves de madeira da nau capitã. Enquanto abre sua bocarra o mar devorando as fogueiras, Hernán Cortez, de pé sobre a areia aperta o pomo de sua espada e descobre a cabeça.

Não só as naves e os enforcados foram a pique. Já não haverá regresso; nem mais vida que a que nascida a partir de agora, traga consigo o ouro e a glória ou o abutre da derrota. Na praia de Veracruz afundaram os sonhos dos que bem que gostariam de voltar a Cuba, para dormir a sesta colonial em redes tecidas, envolvidos em cabeleiras de mulher e fumaça de charuto: o mar conduz ao passado e à terra, ao perigo. Em lombo de cavalo irão os que puderam pagá-lo, os demais irão a pé: setecentos homens México adentro, até as serras e os vulcões e o mistério de Montezuma.

Cortez ajusta seu chapéu de plumas e dá as costas às chamas. De um galope chega ao casario indígena de Cempoala, enquanto cai a noite. Não diz nada à tropa. Logo ficarão sabendo.

Bebe vinho, sozinho em sua tenda. Talvez pense nos homens que matou sem confissão ou nas mulheres que penetrou sem boda desde seus dias de estudante em Salamanca, que tão remotos parecem, ou em seus perdidos anos de burocrata nas Antilhas, durante o tempo de espera. Talvez pense no governador Diego Velázquez, que estará tremendo de fúria em Santiago de Cuba. Com certeza sorri, ao pensar neste dormilão boboca, cujas ordens nunca mais obedecerá; ou na surpresa que espera os soldados que está escutando amaldiçoar nas rodas de dados e baralho do acampamento.

Algo disso anda em sua cabeça, ou talvez a fascinação e o pânico dos dias que estão por vir; e então ergue o olhar, a vê na porta e à contraluz a reconhece. Se chamava Malinali ou Malinche quando o cacique de Tabasco deu-a de presente a ele. Faz uma semana que se chama Marina.

Cortez lhe diz umas quantas palavras enquanto ela, imóvel, espera. Depois, sem um gesto, a moça desata os cabelos e a roupa. Um redemoinho de tecidos coloridos cai entre seus pés despidos e ele cala quando o corpo dela aparece e resplandece.

A poucos passos dali, o soldado Bernal Díaz del Castillo escreve, à luz da lua, a crônica da jornada. Usa como mesa um tambor.
Eduardo Galeano, "Os Nascimentos"

Netinho

Se tivesse mais dois anos, chamá-lo-ia mentiroso. No seu verdor, é apenas um ser a quem a imaginação comanda, e que, com isso, dispõe de todos os filtros da poesia.

O que aconteceu, para ele, não conta. O que não aconteceu, sim, pula a todo instante na conversa e logo se materializa, real dentro do real. Geralmente, se lhe perguntamos alguma coisa, a resposta é um ato criador.

— Quem buliu neste açucareiro e sujou a toalha?

— Foi Puck.

— Mas Puck é um cachorrinho de nada, não sobe à mesa.

— Subiu na cadeira.

— Você viu Puck subir?

— Vi, ué.

— E deixou?

— Eu disse assim: Puck, não sobe nessa cadeira não.

— E que foi que Puck lhe respondeu?

— Que tinha vontade de comer um torrãozinho de açúcar.

— Mas você é que comeu torrão de açúcar. Está-se vendo pela sua boca lambuzada.

— É, eu também comi um, mas foi Puck quem deu.

Horas depois:

— Você se lembra? Naquele dia em que Puck me deu um torrão de açúcar…

O tempo ainda não existe em forma fixa. As coisas marcadas para amanhã desenham-se no nevoeiro, ou mergulham no insondável. Prometem-lhe um velocípede.

— Onde está?

— Espere, vem amanhã.

— Por que amanhã nunca é hoje?

E ninguém, de Bergson ao avô, saberia responder-lhe ao certo.

Contudo, uma noção se delineia, da sequência das horas. Conta-nos um fato estranho:

— Quando o céu ficou azul-escuro, e um gato pulou no terraço, e depois o céu virou claro outra vez, eu fui espiar devagarzinho, e o gato tinha comido a máquina de escrever…

Ama as coisas pelo prazer abstrato da posse, menos pelas coisas em si, ou pelo seu uso voluptuoso. Há um lápis.

— Me dá esse lápis pra mim?

— Não posso.

— Me empresta?

— Não posso, preciso dele.

— Ah, me empresta…

— Está bem, empresto.

— Agora ele é meu?

— Seu, não. Emprestado.

— Eu queria tanto um lápis pra mim… Me dá, anda.

— Está bem, pode ficar com ele.

— É meu? Oba!

E joga-o fora, imediatamente.

Não lhe deem brinquedo caro, porque logo o desmonta para brincar com um pedaço qualquer. Dir-se-ia instinto de destruição, comum à espécie. Inclino-me a crer que seja instinto de simplificação e prazer de recriar, em novas bases, a realidade imposta.

Em suma, grande figura, admirável exemplar de todos os garotos da mesma idade em todo o mundo, e só Deus sabe como foi batida esta crônica (se assim podemos chamá-la), enquanto ele montava a cavalo no cronista: upa, upa, cavalinho alazão!
Carlos Drummond de Andrade, "Fala, Amendoeira"

segunda-feira, março 25

Leitura noturna

 


Verissimo e a marca do Zorro

Quando eu tinha catorze ou quinze anos, a Editora Globo de Porto Alegre e a Livraria Pedrosa em Campina Grande conspiraram mediante alguma Cabala cósmica e me permitiram ler e reler à vontade os livros de viagens de Érico Verissimo.

Em meados dos anos 1960 Érico já era um dos autores da “primeira divisão”, se houvesse um ranking da literatura. Aparecia nos livros escolares, vendia edições sucessivas.

Num desses livros de viagens ele fazia logo no parágrafo de abertura uma descrição de onde estava, a cidade, a época, registrava o instante mesmo em que estava redigindo aquilo. E dizia a certa altura: “No andar de cima (ou de baixo, tanto faz) meu filho está ensaiando, mamando no saxofone o leite gordo do blues”.

Muitos anos depois essa lembrança me veio quando eu já tinha lido o quinto ou sexto volume das crônicas de Luís Fernando Verissimo, e alguém numa entrevista mencionou o saxofone. A essa altura ele já era um dos cronistas mais lidos na imprensa e vendido nas livrarias.

Verissimo ganhava a gente (o leitor jovem) por diferentes motivos: o humor, o nonsense, a linguagem, as situações, a comédia humana… No meu caso, era isso tudo e mais uma coisa: o exemplo de uma escrita de destreza absoluta, capaz de jogar qualquer leitor dentro de qualquer situação com duas ou três linhas, às vezes menos do que isto.

Temos entre nós a tendência ao nariz de cera, ao prelúdio interminável, por isso eu admiro quem apresenta uma situação complexa em rápidas pinceladas, como se diria antigamente. Como Machado, que nem sempre fazia isso, mas quando o fazia parecia a espada do Zorro traçando um “Z” mais depressa do que o olho podia acompanhar.

Dois ou três movimentos da espada-caneta, é o quanto basta a Verissimo para pegar o leitor pela mão e jogá-lo no epicentro de um improvável bate-boca entre dois personagens sem nome e sem rosto, ou na linha de fogo de um faroeste ou policial noir, conjurado do Nada com um ou dois detalhes e pronto, decolou.

Existe no leitor habitual de LFV a expectativa desses inícios-catapulta, mas meu interesse é pelo leitor não-habitual, o leitor que está chegando no autor pela primeira vez, e às vezes sem muita idéia de quem é, alguém que um colega ou um professor falou que tinha coisas legais. Três linhas, e a isca foi mordida.

No fim das contas, talvez não seja tão difícil arrebatar assim um leitor. Basta dizer-lhe de maneira rápida e nítida o que está acontecendo, e despertar-lhe uma vontade incontida de saber o que acontece em seguida.

Toda literatura precisa ser feita assim? Claro que não, mas é grande o número dos que tentam e não conseguem. Às vezes a história a ser contada requer uma contação empolgante. E isso nem todo bom inventador de histórias tem.

Verissimo afiou dez mil vezes a lâmina dessa espada chamada crônica leve, um gênero tão nosso. Fez o mesmo com o texto de humor, excelente laboratório de técnicas, porque nele se perdoa qualquer experimentalismo retórico ou semiótico, desde que o resultado seja engraçado, faça mesmo rir.

A crônica jornalística, de Machado e Lima Barreto para cá, misturada às vezes com prosa poética e com relatos pitorescos, nos ajudou a combater a erudição balofa, prolixa, pomposa, mesmo que ao preço das consequências de ser a crônica um gênero tido como “mais fácil” do que o conto.

O humor tem essa autoridade moral das histórias que não pretendem ser nada mais do que são, histórias. “Entram num bar um maestro, um viúvo e um dinamarquês.” Isso é realidade suficiente para fazer qualquer leitor alçar voo.

Verissimo adquiriu essa autoridade narrativa, que por um lado formou mais de uma geração de leitores, e por outro lado continuará a ser submetida à mais imprevisível das avaliações, a do leitor que não conhece o livro, não sabe (nem quer saber) quem é o autor, mas é capaz de reconhecer logo nas primeiras linhas uma história bem contada.

Clássicos fazem crescer

Os clássicos da literatura me tornaram gente grande, mas foram os best-sellers que me fizeram começar a ser leitora durante a adolescência

A promessa

O meu pai tinha abandonado a minha mãe pouco depois de eu nascer, e cada vez que eu mencionava o seu nome , o que raramente fazia, a minha mãe e Aniela trocavam um olhar rápido e o assunto da conversa era sem demora desviado. Bem sabia eu, no entanto, por bocados de conversa surpreendidos uma vez ou outra, que havia no caso qualquer coisa de incómodo, de doloroso até e não tardei a compreender que era melhor evitar falar no assunto.

Eu sabia que o homem que me dera o seu nome tinha mulher, filhos e que viajava muito, ia à América, e encontrei-o algumas vezes. Tinha um aspecto agradável, grandes olhos bondosos e mãos muito cuidadas; comigo era sempre amável e tímido e quando me fitava, tristemente e creio que com certo censura, eu baixava os olhos e tinha, não sei porquê, a impressão de que lhe houvera pregado uma partida.

Só depois da sua morte ele entrou verdadeiramente na minha vida e duma maneira que nunca esquecerei. Sabia bem que fora morto durante a guerra numa câmara de gás, executado como judeu, com mulher e filhos, que já tinham, creio eu, quinze e dezasseis anos de idade. Mas foi somente em 1956 que soube um pormenor particularmente revoltante do seu fim trágico. Vindo da Bolívia, onde era adido comercial, dirigia-me nessa altura a Paris para receber o Prémio Goncourt por um romance que acabara de publicar, As Raízes do Céu. Entre as cartas que recebi por essa ocasião houve uma que me dava pormenores sobre a morte daquele que eu tão pouco conhecera.

Não tinha morrido na câmara de gás como me haviam dito. Morrera de medo a caminho do suplício , a alguns passos da entrada.

A pessoa que me escrevia tinha sido encarregada de receber à porta os condenados - não sei que nome lhe aplicar, nem qual o título oficial que lhe davam.

Na carta , sem dúvida para me ser agradável, dizia-me que o meu pai não chegara atá à câmara de gás e que tinha caído morto de pavor antes de entrar.
Fiquei durante muito tempo com a carta na mão; saí em seguida pela escada da NRF, apoiei-me no corrimão e ali fiquei, não sei por quanto tempo, com a farda talhada nos alfaiates de Londres, o meu título de adido comercial da França, a minha Cruz da Libertação, a roseta da Legião de Honra e o meu Prémio Goncourt.
Tive sorte : Albert Camus passou nesse momento e, vendo que me sentia indisposto, levou-me para o seu gabinete.

O homem que morrera daquela forma era um estrangeiro para mim, mas desde esse dia passou a ser meu pai e para sempre.

Continuei a recitar as fábulas de La Fontaine, os poemas de Déroulède e de Béranger e a ler uma obra intitulada Cenas edificantes da vida dos grandes homens, grosso volume de capa azul ornado duma gravura dourada representando o naufrágio de Paulo e Virgínia. A minha mãe adorava a história de Paulo e Virgínia, que ela achava particularmente exemplar. Relia-me muitas vezes a emocionante passagem em que Virgínia prefere morrer afogada a ter de se despir. A minha mãe fungava de satisfação sempre que acabava esta leitura. Eu escutava com atenção, mas era já cético a tal respeito. Convencia-me de que Paulo não tinha sabido encaminhar as coisas.

Para me ensinar a manter a minha categoria com dignidade fui também convidado a estudar um grosso volume intitulado Vidas dos franceses ilustres; a minha mãe lia-me alguns passos em voz alta e, depois de ter evocado um episódio admirável das vidas de Pasteur, Joana d'Arca e Rolando de Roncesvales, lançava-me um demorado olhar cheio de esperança e de ternura, com o livro nos joelhos. Só a vi revoltar-se uma vez, vindo à superfície a sua alma russa ante as correcções inesperadas que os autores faiam á História. Eles descreviam , nomeadamente, a batalha de Borodino como uma vitória francesa, e a minha mãe, depois de ter lido este parágrafo , ficou um momento perturbada e disse a seguir, fechando o volume , num tom escandalizado:

- Não é verdade. Borondino foi uma grande vitória russa. É preciso não exagerar.

Romain Gary, "A Promessa"

A menina Silvana


A menina estava quase inteiramente nua, porque cinco ou seis estilhaços, de uma granada alemã a haviam atingido em várias partes do corpo. Os médicos e os enfermeiros, acostumados a cuidar rudes corpos de homens, inclinavam-se sob a lâmpada para extrair os pedaços de aço que haviam dilacerado aquele corpo branco e delicado como um lírio – agora marcado de sangue. A cabeça de Silvana descansava de lado, entre cobertores. A explosão estúpida poupara aquela pequena cabeça castanha, aquele perfil suave e firme que Da Vinci amaria desenhar. Lábios cercados, sem uma palavra ou um gemido, ela apenas tremia um pouco quando lhe tocavam num ferimento contraía quase imperceptivelmente os músculos da face. Mas tinha os olhos abertos – e quando sentiu na minha sombra ergueu-os um pouco. Nos seus olhos eu não vi essa expressão cachorro batido dos estropiados, nem essa luz de dor e raiva dos homens colhidos no calor do combate, nem essa impaciência dolorosa de tantos feridos, ou o desespero dos que acham que vão morrer. Ela me olhou quietamente. A dor contraía-lhe, num pequeno tremor, as pálpebras, como se a luz lhe ferisse um pouco os olhos. Ajeitei-lhe a manta sobre a cabeça, protegendo-a da luz, e ela voltou a me olhar daquele jeito quieto e firme de menina correta.

Deus, que está no Céu – se é que, depois de tantos desgovernos cruéis e tanta criminosa desídia, ninguém o pôs para fora de lá, ou Vós mesmo, Senhor, não vos pejais de estar aí quando Vossos filhos andam neste inferno! – Deus sabe que tenho visto alguns sofrimentos de crianças e mulheres. A fome dessas meninas da Itália que mendigam na entrada dos acampamentos, a humilhação dessas mulheres que diante dos soldados trocam qualquer dignidade por um naco de chocolate – nem isso, nem o servilismo triste mais que tudo, dos homens que precisam levar pão à sua gente – nada pode estragar a minha confortável guerra de correspondente. Vai-se tocando, vai-se a gente acostumando no ramerrão da guerra; é um ramerrão como qualquer outro e tudo entra nesse ramerrão – a dor, a morte, o medo, o disco de Lili Marlene junto de uma lareira que estala, a lama, o vinho, a cama-rolo, a brutalidade, a ajuda, a ganância dos aproveitadores, o heroísmo, as cansadas pilhérias – mil coisas no acampamento e na frente, em sucessão monótona. Esse corneteiro que o frio da madrugada desafina não me estraga a lembrança de antigos quartéis de ilusões, com alvoradas de violino – Senhor, eu juro, sou uma criatura rica de felicidades meigas, sou muito rico, muito rico, ninguém nunca me amargará demais. E às vezes um homem recusa comover-se: meninas da Toscana, eu vi vossas irmãzinhas do Ceará, barrigudinhas, de olhos febris, desidratadas, pequenos trapos de poeira humana que o vento da seca ia a tocar pelas estradas. Sim, tenho visto alguma coisa e também há coisas que homens que viram me contam: a ruindade fria dos que exploram e oprimem e proíbem pensar, e proíbem comer, e até o sentimento mais puro torcem e estragam, as vaidades monstruosas que são massacres lentos e frios de outros seres – sim, por mais distraído que seja um repórter, ele sempre em alguma arte em que anda, vê alguma Muitas vezes não conta. Há 13 anos trabalho neste ramo – e muitas vezes não conto. Mas conto a história sem enredo dessa menina ferida. Não sei que fim levou e se morreu ou está viva, mas vejo seu fino corpo branco e seus olhos esverdeados e quietos. Não me interessa que tenha sido inimigo o canhão que a feriu. Na guerra, de lado a lado, é impossível, até um certo ponto, evitar essas coisas. Mas penso nos homens que começaram esta guerra e nos que permitiram que eles começassem. Agora é tocar a guerra – e quem quer que possa fazer qualquer coisa para tocar a guerra mais depressa, para aumentar o número de bombas dos aviões e tiros das metralhadoras, para apressar a destruição, para aumentar aos montes a colheita de mortes – será um patife se não ajudar. É preciso acabar com isso, e isso só se acaba a ferro e fogo, com esforço e sacrifícios de todos, e quem pode mais deve fazer muito mais, e não cobrar o sacrifício do pobre e se enfeitar com as glórias fáceis. E preciso, acabar com isso, e acabar com os homens que começaram isso e com tudo o que causa isso – o sistema idiota e bárbaro de vida social onde um grupo de privilegiados começa a matar quando não tem outro meio de roubar.

Pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (sem importância nenhuma no oceano de crueldades e injustiças), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (mas ó hienas, ó porcos, de voracidade monstruosa, e vós também, águias pançudas e urubus, ó altos poderosos de conversa fria ou voz frenética, que coisa mais sagrada sois ou conheceis que essa quieta menina camponesa?), pelo corpo inocente, pelos olhos inocentes da menina Silvana (ó negociantes que roubais na carne, quanto valem esses pedaços estraçalhados?) – por esse pequeno ser simples, essa pequena coisa chamada uma pessoa humana, é preciso acabar com isso, é preciso acabar para sempre, de uma vez por todas.
Rubem Braga

sexta-feira, março 22

Procurando o assassino

 


Cinco Palavras Cinco Pedras

Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
E em parte resume o que penso da vida
Passado o dia oito de cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
E delas vem a música precisa
Para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo

Antigamente quando os deuses eram grandes
Eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas

Ruy Belo, “Todos os poemas”

O encanto da máquina

Você sempre pergunta pelas novidades daqui deste sertão, e finalmente posso lhe contar uma importante. Fique o compadre sabendo que agora temos aqui uma máquina imponente, que está entusiasmando todo o mundo. Desde que ela chegou — não me lembro quando, não sou muito bom em lembrar datas — quase não temos falado em outra coisa; e da maneira que o povo aqui se apaixona até pelos assuntos mais infantis, é de admirar que ninguém tenha brigado ainda por causa dela, a não ser os políticos.

A máquina chegou uma tarde, quando as famílias estavam jantando ou acabando de jantar, e foi descarregada na frente da Prefeitura. Com os gritos dos choferes e seus ajudantes (a máquina veio em dois ou três caminhões) muita gente cancelou a sobremesa ou o café e foi ver que algazarra era aquela. Como geralmente acontece nessas ocasiões, os homens estavam mal-humorados e não quiseram dar explicações, esbarravam propositalmente nos curiosos, pisavam-lhes os pés e não pediam desculpa, jogavam pontas de cordas sujas de graxa por cima deles, quem não quisesse se sujar ou se machucar que saísse do caminho.

Descarregadas as várias partes da máquina, foram elas cobertas com encerados e os homens entraram num botequim do largo para comer e beber. Muita gente se amontoou na porta mas ninguém teve coragem de se aproximar dos estranhos porque um deles, percebendo essa intenção nos curiosos, de vez em quando enchia a boca de cerveja e esguichava na direção da porta. Atribuímos essa esquiva ao cansaço e à fome deles e deixamos as tentativas de aproximação para o dia seguinte; mas quando os procuramos de manhã cedo na pensão, soubemos que eles tinham montado mais ou menos a máquina durante a noite e viajado de madrugada.

A máquina ficou ao relento, sem que ninguém soubesse quem a encomendou nem para que servia. É claro que cada qual dava o seu palpite, e cada palpite era tão bom quanto outro.

As crianças, que não são de respeitar mistério, como você sabe, trataram de aproveitar a novidade. Sem pedir licença a ninguém (e a quem iam pedir?), retiraram alona e foram subindo em bando pela máquina acima — até hoje ainda sobem, brincam de esconder entre os cilindros e colunas, embaraçam-se nos dentes das engrenagens e fazem um berreiro dos diabos até que apareça alguém para soltá-las; não adiantam ralhos, castigos, pancadas; as crianças simplesmente se apaixonaram pela tal máquina.

Contrariando a opinião de certas pessoas que não quiseram se entusiasmar, e garantiram que em poucos dias a novidade passaria e a ferrugem tomaria conta do metal, o interesse do povo ainda não diminuiu. Ninguém passa pelo largo sem ainda parar diante da máquina, e de cada vez há um detalhe novo a notar. Até as velhinhas de igreja, que passam de madrugada e de noitinha, tossindo e rezando, viram o rosto para o lado da máquina e fazem uma curvatura discreta, só faltam se benzer. Homens abrutalhados, como aquele Clodoaldo seu conhecido, que se exibe derrubando boi pelos chifres no pátio do mercado, tratam a máquina com respeito; se um ou outro agarra uma alavanca e sacode com força, ou larga um pontapé numa das colunas, vê-se logo que são bravatas feitas por honra da firma, para manter fama de corajoso.

Ninguém sabe mesmo quem encomendou a máquina. O prefeito jura que não foi ele, e diz que consultou o arquivo e nele não encontrou nenhum documento autorizando a transação. Mesmo assim não quis lavar as mãos, e de certa forma encampou a compra quando designou um funcionário para zelar pela máquina.

Devemos reconhecer — aliás todos reconhecem — que esse funcionário tem dado boa conta do recado. A qualquer hora do dia, e às vezes também de noite, podemos vê-lo trepado lá por cima espanando cada vão, cada engrenagem, desaparecendo aqui para reaparecer ali, assoviando ou cantando, ativo e incansável. Duas vezes por semana ele aplica caol nas partes de metal dourado, esfrega, sua, descansa, esfrega de novo — e a máquina fica faiscando como joia.

Estamos tão habituados com a presença da máquina ali no largo, que se um dia ela desabasse, ou se alguém de outra cidade viesse buscá-la, provando com documentos que tinha direito, eu nem sei o que aconteceria, nem quero pensar. Ela é o nosso orgulho, e não pense que exagero. Ainda não sabemos para que ela serve, mas isso já não tem maior importância. Fique sabendo que temos recebido delegações de outras cidades, do estado e de fora, que vêm aqui para ver se conseguem comprá-la. Chegam como quem não quer nada, visitam o prefeito, elogiam a cidade, rodeiam, negaceiam, abrem o jogo: por quanto cederíamos a máquina. Felizmente o prefeito é de confiança e é esperto, não cai na conversa macia.

Em todas as datas cívicas a máquina é agora uma parte importante das festividades.Você se lembra que antigamente os feriados eram comemorados no coreto ou no campo de futebol, mas hoje tudo se passa ao pé da máquina. Em tempo de eleição todos os candidatos querem fazer seus comícios à sombra dela, e como isso não é possível, alguém tem de sobrar, nem todos se conformam e sempre surgem conflitos. Felizmente a máquina ainda não foi danificada nesses esparramos, e espero que não seja.

A única pessoa que ainda não rendeu homenagem à máquina é o vigário, mas você sabe como ele é ranzinza, e hoje mais ainda, com a idade. Em todo caso, ainda não tentou nada contra ela, e ai dele. Enquanto ficar nas censuras veladas, vamos tolerando; é um direito que ele tem. Sei que ele andou falando em castigo, mas ninguém se impressionou.

Até agora o único acidente de certa gravidade que tivemos foi quando um caixeiro da loja do velho Adudes (aquele velhinho espigado que passa brilhantina no bigode, se lembra?) prendeu a perna numa engrenagem da máquina, isso por culpa dele mesmo. O rapaz andou bebendo em uma serenata, e em vez de ir para casa achou de dormir em cima da máquina. Não se sabe como, ele subiu à plataforma mais alta, de madrugada rolou de lá, caiu em cima de uma engrenagem e com o peso acionou as rodas. Os gritos acordaram a cidade, correu gente para verificar a causa, foi preciso arranjar uns barrotes e labancas para desandar as rodas que estavam mordendo a perna do rapaz. Também dessa vez a máquina nada sofreu, felizmente. Sem a perna e sem o emprego, o imprudente rapaz ajuda na conservação da máquina, cuidando das partes mais baixas.

Já existe aqui um movimento para declarar a máquina monumento municipal — por enquanto. O vigário, como sempre, está contra; quer saber a que seria dedicado o monumento. Você já viu que homem mais azedo? Dizem que a máquina já tem feito até milagre, mas isso — aqui para nós — eu acho que é exagero de gente supersticiosa, e prefiro não ficar falando no assunto. Eu — e creio que também a grande maioria dos munícipes — não espero dela nada em particular; para mim basta que ela fique onde está, nos alegrando, nos inspirando, nos consolando. O meu receio é que, quando menos esperarmos, desembarque aqui um moço de fora, desses despachados, que entendem de tudo, olhe a máquina por fora, por dentro, pense um pouco e comece a explicar a finalidade dela, e para mostrar que é habilidoso (eles são sempre muito habilidosos) peça na garagem um jogo de ferramentas, e sem ligar a nossos protestos se meta por baixo da máquina e desande a apertar, martelar, engatar, e a máquina comece a trabalhar. Se isso acontecer, estará quebrado o encanto e não existirá mais máquina.
José J. Veiga, "A máquina extraviada"

quinta-feira, março 21

Estagiário na biblioteca

 


Aconteceu na Suécia

O sorriso é, geralmente, muito bem aceito em sociedade. A menos quando não há razão para estar alegre e a pessoa abre um meio sorriso, sardônico, voltairiano. Esse sorriso da inteligência, marca dos espíritos privilegiados, às vezes ofende; quase sempre inquieta.

Já o riso é a explosão do sorriso. O sistema nervoso central se descontrola e o corpo inteiro se sacode, os pulmões expelem todo o ar de que dispõem, as lágrimas se aproximam das pálpebras. Certas situações, ou às vezes uma simples frase, ou então uma lembrança antiga que aflora de repente à consciência, são capazes de provocar um riso de tal forma demente que sua manifestação é a gargalhada.

Aqui, entramos no terreno da repressão. Não se pode rir às gargalhadas em todas as ocasiões. Num velório, por exemplo, por mais engraçado que esteja o defunto, convém mostrar à viúva uma cara fúnebre, sinal de que lamentamos profundamente o falecimento do cidadão. Na igreja também é melhor não rir; idem diante do juiz ou do delegado de polícia; no ônibus, se você lembra um episódio hilariante de algum filme ou livro, cuidado com a gargalhada solitária, vão pensar que há um passageiro lunático.


Riso e repressão, todos sabem, vivem brigando, pois o riso é uma arma. Os humoristas derrubam tabus, preconceitos, desnudam injustiças; mostrando que o rei está nu, privam o tirano de sua majestade. Por isso, os ditadores só podem encarar o riso de duas maneiras: 1) o humorista é pago pelos cofres do Estado, para prestigiá-lo; esse merece todos os favores; 2) o humorista denuncia o que há de ridículo na situação; esse há de ser suprimido.

Assim, o riso e a vida humana são uma só coisa. Acrescente-se que o riso é a única arma eficaz no combate à morte, ao nada. Dispenso-me de comprovar o que estou dizendo, por já estar cansado de discorrer sobre o óbvio.

Perguntará o leitor: “E por quê”? Respondo que essa digressão me pareceu necessária à compreensão do caso que se segue — o caso do soldador Bosse Gustafsson.

Aconteceu na Suécia. Há na Suécia uma cidade, Eksjo, que em 1968 foi eleita a cidade mais desagradável do mundo. Do recorte que me entregaram, tirado de um jornal sueco e com a respectiva tradução datilografada, consta apenas que essa eleição foi patrocinada por uma revista semanal. Mas, no outono de 1970, o soldador Bosse Gustafsson atravessava a praça Grande de Eksjo.

Gustafsson tem 23 anos de idade. Atravessando a praça Grande da cidade mais desagradável do mundo, riu-se às gargalhadas. Era o chamado riso insopitável, provocado por uma especulação qualquer de seus humores, sem relação com a paisagem e a população notoriamente chatas de Eksjo.

Na primavera de 1971, que é agora, o soldador foi julgado e condenado a pagar uma multa de 50 coroas ao governo sueco. A rubrica da condenação foi: “Conduta capaz de despertar aborrecimento, irritação”.

— Foi uma gargalhada tensa e espremida — declararam os queixosos, que se encontravam todos na praça Grande, na célebre manhã em que o soldador por lá passou. — Enquanto se abria naquela gargalhada, o sr. Gustafsson levantava os braços acima da cabeça e batia as palmas das mãos nos joelhos, várias vezes. A risada incomodou terrivelmente os moradores em volta da praça. Todos os que se achavam na praça olharam para o sr. Gustafsson.

Portanto, na cidade mais desagradável do mundo, é proibido rir. O que não deixa de ser engraçado, quá-quá-quá!

*

P.S. — Por falar em riso, dia 28 estará nas bancas o Almanaque dos Fradinhos. Cumprido, o masoquista, e Baixinho, o sádico, são indicações de que ainda não somos, nem seremos tão cedo, o lugar mais desagradável do mundo…
José Carlos Oliveira

Diário de um Livreiro: o sebo dos sebos



 

Sempre imaginei que o paraíso fosse uma espécie de livraria
Jorge Luis Borges (1899-1986)










Viajei para Galloway – “o canto esquecido da Escócia” – e perambulei por Wigtown, uma cidadezinha da região com menos de 1.000 habitantes. Lá conheci a terceira livraria do mundo na avaliação do The Guardian, que usou para isso o critério de “peculiaridade e excelência”. Essa viagem foi feita sem sair de casa, percorrendo “O Diário de um Livreiro” escrito por Shaun Bythell, dono da livraria e de refinada ironia, além de deliciosas histórias que conta com humor.

Muitas delas foram protagonizadas por clientes e funcionários da livraria, assim como por autores de diferentes países que participam dos festivais do livro e se alojam no “Retiro dos Escritores”. Lá, após jornada cansativa, um grupo bebericava na maior alegria, quando no final da noite chegou Louise Stern, escritora estadunidense residente em Londres. Surda, ela se fazia acompanhar por um intérprete na língua de sinais na qual se comunica. Com a palavra, Shaun:

– O ambiente ficou ligeiramente sério. Louise percebeu a tensão e se colocou à disposição para responder perguntas.

– “Você fez uma boa viagem até aqui?” – indaguei. Respondeu que sim, tudo traduzido na língua de sinais. Depois ela disse:

– “Agora é a minha vez: com que idade você perdeu a virgindade?” Foi o suficiente para quebrar o gelo e voltarmos à devassidão indecente de antes de sua chegada.

O Diário está repleto de histórias sucedidas na “Cidade dos livros”, título com a qual Wigtown foi agraciada em 1998. No festival literário anual durante dez dias de setembro/outubro, milhares de pessoas vindas de outros países vivem momentos singulares ao transitarem por mais de 200 eventos realizados em cerca de 300 tendas, a maior delas armada na grande praça, onde se projetam filmes e se apresentam grupos de música e dança folclórica.

Caverna do Aladim

Essa não é a única feira anual do livro. O Festival da Primavera, organizado em maio pela Associação de Livreiros de Wigtown para os moradores da região, é mais modesto. No entanto, durante o ano inteiro, Wigtown atrai milhares de turistas, que se dirigem para lá em romaria para vender ou comprar livros, com visita obrigatória ao templo principal – a Book Shop conhecida pelos clientes como a “Caverna do Aladim” de propriedade do autor do Diário.

Sediada em prédio antigo, a Book Shop tem fachada de granito com duas colunas de livros empilhados em espiral antes revestidos de vidro e agora em cimento. Possui nove salas, corredores labirínticos, chaminés e um estoque de mais de 100.000 livros em dois quilômetros de estantes, além de um apartamento de quatro quartos na sobreloja e um jardim com casa de veraneio ao fundo – a “Toca da Raposa”, usada para eventos como curso de redação criativa e aulas de arte e pintura para senhoras.

Wigtown respira livros por todas as letras. O seu pulmão oxigenador de palavras é a Book Shop que, no festival, cedeu o espaço para o show musical da Bookshop Band, banda sempre em turnê por livrarias da Escócia, cujas canções inspiradas pelos livros lidos por seus músicos funcionam como uma espécie de resenha cantada. Em Wigtown, tudo gira em torno do livro. Até o pub da moda é um “pé sujo” com o nome The Ploughman, título do livro do escritor escocês John McNeillie.

Nos últimos festivais, um show de marionetes encenado no “espaço criativo” foi seguido de um espetáculo de teatro com um casal de atores, que representou cenas de filmes famosos ambientadas em livrarias, entre outros À beira do abismo com Humphrey Bogart e Lauren Bacall e Um lugar chamado Notting Hill com Júlia Roberts e o dono da loja em Londres protagonizado por Hugh Grant.

Alegria dos leitores

É notável como uma cidadezinha, com metade da população de um único edifício de Copacabana, o de número 200 da rua Barata Ribeiro, sedia uma livraria dessa dimensão, atendendo pedidos on line de todos os continentes. Além disso, uma estratégia bem elaborada preserva a clientela com a fórmula que lembra a torcida do Flamengo: Once a Client, Always Client, que é, aliás, o título de um livro.

Fazem parte dessa estratégia um desdobramento da livraria – o Random Book Club, através do qual, por 59 libras ao ano, os assinantes recebem um livro-surpresa por mês. Outra seção é o programa Alegria dos Leitores, que filma os clientes dentro da loja, lendo trecho de livro de sua escolha. Os vídeos são postados no Facebook com tal sucesso que um blog na China pediu para compartilhá-los no equivalente chinês do Youtube.

Mas o essencial é mesmo a renovação permanente do estoque, que acontece diariamente quando pessoas procuram a loja para vender livros usados ou quando Shaun busca coleções nas casas de donos de bibliotecas particulares que morreram. Familiares quase sempre desconhecidos telefonam para negociar os livros herdados:

– O número de funerais a que compareço aumenta cada ano. A experiência de recolher bens de uma pessoa falecida é familiar para os comerciantes de livros usados e vai deixando você insensível aos poucos. Desmantelar aquela coleção de livros parece ser o ato final de destruição de suas memórias.

Shaun calcula que carrega, ao todo, 15 toneladas anuais de caixas de livros para dentro e para fora de seu carro, em andanças que o obrigaram a tratar de sua coluna vertebral.

Um pum letrado

Uma dessas andanças decorreu do chamado da viúva de um pastor aposentado da Igreja da Escócia, que queria vender a biblioteca do marido recém falecido. Shaun foi até sua casa, ela o levou à sala de jantar, onde os livros estavam colocados com a lombada para cima. Enquanto examinava a coleção, explodiu uma sequência de som de metralhadora em carretilha seguido de um longo assobio:

– Ela soltou um pum que durou uma eternidade, parecido com o apito extremamente sibilante de um trem. Aí se escafedeu para o jardim. Seu filho que segundos depois entrou na sala logo detectou a fedentina e me lançou um duro olhar acusador. Fui embora com quatro caixas de livros de teologia e a reputação de peidão.

A organização do Diário, já traduzido em 30 línguas, é original. Na abertura de cada mês traz uma frase de George Orwell, autor de Bookshop Memories, que comenta sua experiência com venda de livros. E no final de cada dia informa quantos clientes foram ao sebo, quantos pedidos on line, o número de livros encontrados e o faturamento diário, revelando ainda o tipo de livros adquiridos para o estoque.

– Muitos livreiros se especializaram em um tema. Eu não – escreve Shaun Bythell.

Efetivamente, as coleções compradas por ele versam sobre os mais diversos assuntos: ficção medieval e moderna, poesia, literatura universal, crítica literária, teologia, religião, ornitologia, ictiologia, piscicultura, botânica, montanhismo, exploração polar, história marítima, história universal e da Escócia, ciências jurídicas, ambientalismo, livros sobre golfe, aviação, antiquários, ferrovias, etc.

Livros eróticos

Os livros sobre trens e ferrovias são os mais vendidos, “comprados invariavelmente por homens com barba”. É diferente daquele que os moralistas chamariam de pornografia, que merecem uma reflexão do Diário, quando narra que uma mulher de 80 anos, toda serelepe, foi à loja para vender uma coleção erótica com fotos de jovens da década de 1960. Ao vê-lo folhear um dos livros para avaliar o preço, a senhora idosa disse:

– Duvido você adivinhar quem sou eu nessa foto.

Ele não informa se a identificou, mas comentou:

– É difícil adquirir o gênero erótico, porque muito pouco pode ser vendido na Amazon ou no eBay, já que esses livros ferem as sensibilidade pudibunda dos puritanos encarregados de ambas plataformas.

Uma das broncas do autor é justamente com a Amazon, a “ceifadeira das ceifadeiras” e com seu leitor de livros digitais, o kindle, contra o qual disparou um tiro, em nome de uma geração habituada com o suporte material do livro, que evoca todos os nossos sentidos. Fez um vídeo com o kindle estilhaçado, colocou a foto em uma moldura, que se tornou o objeto mais fotografado de sua loja, cujos visitantes reafirmam o prazer de ler um livro físico.

– Embora a Amazon pareça beneficiar os consumidores, as condições punitivas que ela impõe aos vendedores prejudicam não apenas as livrarias independentes, mas também as editoras, os autores e, em última análise, a criatividade – ele escreve, sem saber que no Brasil o governador Wilson Lima fez parte do Festival da Besteira que Assola o País com sua proposta de cobrar royalties da empresa que usa o nome do Estado que ele governa.

A braguilha aberta

Um capítulo à parte são os clientes. Tem de tudo: atrevimento, grosseria, ignorância, manias, bizarrice. Um deles entrou na loja vestido de guerreiro das Terras Altas: colete verde, meias tricotadas, gorro escocês de fuzileiro naval com penas esvoaçantes da exótica ave tetraz.

Shaun registra esses comportamentos dos clientes em postagens no Facebook “para transmitir todo o horror ou a deliciosa alegria de trabalhar em uma livraria, incluindo as perguntas estúpidas e os comentários rudes”. Na frente do balcão da loja, um cartaz traz uma frase atribuída a Einstein:

– “Duas coisas são infinitas, o universo e a estupidez humana, mas com relação ao universo, não tenho certeza absoluta”.

Outro cliente, já idoso, removeu a dentadura e a colocou sobre um livro.

– Sua braguilha está aberta – falou Shaun discretamente sem mencionar a dentadura.

– Pássaro morto não sai da gaiola – disse o cliente desdentado que se retirou mantendo o zíper aberto.

Clientes assíduos desfilam pelas páginas do diário, entre outros: Jock, conhecido por contar história compridas e improváveis; Sandy, “o pagão tatuado”; uma megalomaníaca que se acha escritora genial; um velho advogado “com a habitual circunferência abdominal de homens de meia-idade inativos” e Kelly Cheiroso, apaixonado pela funcionária Nicky, braço direito do autor, que vai trabalhar sempre vestida com roupa de esqui.

Shaun gosta de fazer gozação com sua equipe, especialmente com a eficiente Nicky, que professa a religião milenarista “Testemunhas de Jeová”, o que às vezes interfere no seu ofício, como quando ela classificou o livro “A origem das espécies” de Darwin como ficção, dificultando achá-lo na devida prateleira.

Captain, o gato

Não sei como Nicky classificaria o Diário, se como livro de memórias ou de ficção. Lá estão os afetos de Shaun: a escritora americana Jessica Fox, então sua namorada, aparece com o nome de Anna, em 2014, quando o Diário foi escrito e seu autor completava 44 anos, mas o gato preto, que morava com o casal, é identificado com o nome real de Captain, assim batizado em homenagem ao capitão cego do livro Under Milk Wood de Dylan Thomas.

– A fama do Captain se alastrou mais do que eu imaginava – conta o livreiro, mencionando “duas mocinhas ruivas muito bonitinhas e amáveis que vieram de manhã e perguntaram pelo gato. Elas seguem a loja no Facebook, onde Captain é uma das estrelas”.

Além de dono da livraria e renomado escritor, Shaun é um leitor qualificado. Suas reflexões sobre os livros que lê ao longo do ano evidenciam a complexidade da prática social da leitura e despertam em nós a fome de ler. Dei-me ao trabalho de fazer uma lista com 174 livros citados e, embora muitos não tenham sido comentados, ali reside um roteiro para futuras leituras.

No Brasil, a literatura escocesa é desconhecida. Li o Diário em dois dias, não digo “vorazmente” por considerar o advérbio inadequado, mas prazerosamente. Seu autor deu continuidade ao tema com mais três livros, que espero ler quando cheguem na Casa 11, o sebo e livraria na Rua das Laranjeiras, 371 – espaço de resistência política e cultural do Rio. Comprar na Amazon? Nem morta, filha. Ou como diriam os portugueses: “Nem f`l´cida, cachoupa”.

Se ganhar na megasena e a saúde permitir, quando setembro vier irei ao Festival de Wigtown para comprovar in loco se a livraria é mesmo um paraíso como imagina Borges. Ou será o contrário? Borges está no paraíso dos escritores e leitores, como ele gosta: lendo.